terça-feira, 8 de outubro de 2013

LAPSO DE LINGUAGEM, EXEMPLO DE PSICOPATOLOGIA NA VIDA COTIDIANA



A maneira mais direta e eficaz de verificar a existência  de processos psíquicos  inconscientes são os fenômenos do cotidiano. Freud estava cônscio disto, por isto, escreveu uma obra voltada para o esclarecimento do público leigo a respeito de suas descobertas clínicas. Esta obra se chama Psicopatologia da vida cotidiana (1901), na qual aborda os atos falhos, que incluem os esquecimentos, os lapsos de linguagem, os erros de escrita, de leitura, e as falsas percepções. O objetivo de Freud foi mostrar para seus leitores que os mesmos conflitos inconscientes verificados nos indivíduos neuróticos, portanto, anormais, ocorriam também na vida de indivíduos ditos normais. Isto ocorre, porque a diferença entre a normalidade e a anormalidade para Freud é somente de grau e não de natureza. 

Convém destacar que na obra A Interpretação dos Sonhos (1900) Freud assegura ser o sonho  uma espécie de sintoma neurótico típico das pessoas normais, pois também é fruto de uma formação de compromisso -  espécie de síntese entre dois desejos antagônicos. Além disso, é também possível fazer semelhante comparação entre os indivíduos normais e os psicóticos: o esquizofrênico viveria numa espécie de sonho em estado de vigília ao confundir suas fantasias subjetivas com a realidade, e o sujeito normal ao sonhar  viveria uma espécie de esquizofrenia no estado onírico.
  Basicamente, a diferença entre uma neurose obsessiva, por exemplo, e um ato falho, reside no fato de que no neurótico o ego não foi forte o suficiente para equilibrar o conflito entre um desejo reprimido e uma determinação Superegóica, o que culminou num sintoma. Nos indivíduos normais os atos falhos equivalem, num certo grau, aos sintomas neuróticos, pois também são produtos de um conflito psíquico, mas com a diferença de que são extemporâneos e "fracos". Extemporâneos porque ocorrem acidentalmente e logo são controlados, "fracos" porque não geram os sofrimentos psíquicos que caracterizam os neuróticos, não obstante serem muito comuns.  Examinemos a seguir, um caso hipotético de lapso de linguagem para compreendermos melhor o conflito existente entre o Id e o Ego, tanto nos indivíduos normais, quanto nos neuróticos.
Suponhamos a existência de uma pessoa que alimentava sentimentos hostis contra seu vizinho, depois que este morreu, no seu velório poderá dizer a algum parente próximo: “meus parabéns pela morte do João” em vez de “minhas condolências pela morte do João”. Ora, este lapso de linguagem é muito fácil de compreender a partir das noções de conflito dinâmico entre o Id e o Ego.  De um lado, o Ego do indivíduo rejeita o desejo de querer morto outro ser humano, pois não foi isto que seus pais lhe ensinaram, nem sua religião. Por outro lado, sua personalidade não foi capaz de neutralizar por completo o sentimento de hostilidade contra o defunto, o qual fora expelido para bem longe da consciência. Neste momento se instala uma espécie de  guerra mental, fruto do conflito entre as pulsões do  Id e as pulsões do Ego: de um lado o Id diz “fique feliz pela morte dele, ele não prestava mesmo!”, e de outro o Ego diz  “ lamente a morte dele, você é um bom católico!”; o Id afirmaria P e o ego afirmaria ~P.  Neste conflito de desejos o  lapso de linguagem seria, portanto, um breve vazamento  do desejo hostil reprimido, uma rápida manifestação do recalcado “à luz do dia da consciência”.





quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Fundamentos epistemológicos para a cientificidade da psicanálise







RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar, num primeiro momento, o movimento de construção e de busca da cientificidade da psicanálise, a partir da justificação epistemológica da existência do inconsciente. Esta justificação é crucial, pois é o próprio objeto material da psicanálise, sobre o qual, então, todo um edifício conceitual poderá ser erigido, incluindo a possibilidade de cura das neuroses. Para tanto, este trabalho busca delinear o itinerário experiencial e teórico desenvolvido por Freud desde suas experiências com a clínica de Charcot; o relacionamento com Breuer; a elaboração da catarse; o vislumbre do registro do inconsciente; até o surgimento do método da associação livre e a conceituação do aparelho psíquico na primeira tópica. Num segundo momento, este artigo aborda a segunda tópica do desenvolvimento teórico da psicanálise, a qual versa sobre os textos metapsicológicos através dos quais, Freud esboça uma epistemologia em defesa da cientificidade da psicanálise.

PALAVRAS–CHAVE: epistemologia, filosofia, psicanálise, inconsciente





1.      Introdução
Qual é o critério epistêmico que faculta à psicanálise a realização das suas afirmações mais fundamentais sobre a possibilidade da cura através do seu método terapêutico? Para compreender o surgimento e o método de trabalho desenvolvido pela psicanálise é essencial buscar a sua história, desde a sua epistemologia e o seu percurso.
A epistemologia, em linhas gerais, é a parte da filosofia que procura estabelecer o critério, as condições e os limites do conhecimento humano. A epistemologia também recebe o nome de Crítica, Gnosiologia ou Teoria do conhecimento. Com efeito, toda ciência que pretende fundamentar racionalmente suas hipóteses, não pode prescindir de uma epistemologia. 
Com efeito, desde a origem da psicanálise, houve uma série de críticas realizadas por psicólogos, médicos e filósofos no tocante à validade científica das afirmações feitas por Freud. A principal crítica foi lançada sobre a existência do inconsciente como lugar central do psiquismo humano e determinante dos comportamentos. Freud, como ele mesmo afirma, realizou a terceira grande ferida narcísica na humanidade ao descentralizar o poder do ego ou da consciência para determinar nossas ações.
Portanto, a existência da psicanálise como ciência, depende da fundamentação epistemológica da descoberta do inconsciente, pois a possibilidade da cura através do método psicanalítico, assim como a verossimilhança de seu cabedal conceitual, é dependente da existência efetiva deste registro.  Pois, se a cura das neuroses, só é possível através do acesso à sua etiologia pelo método da interpretação da associação livre que substituiu a tentativa de cura pela hipnose, então, será necessário oferecer o fundamento (teórico e empírico) exigido até então, do qual dependerá a validade e eficácia do método terapêutico fundado por Freud. Portanto, o que ao autor deste trabalho procura desenvolver subsequentemente objetiva oferecer uma demonstração e justificação (a partir da experiência clínica freudiana) da existência de um registro inconsciente no psiquismo humano, a partir do qual será possível tatear na fixação de bases e no enunciado de conceitos, visando o estabelecimento legítimo de uma ciência psicanalítica, e em contínuo progresso, conforme ocorreu com outros discursos científicos.

2.  A invenção da Psicanálise: rupturas e revoltas

Sigmund Freud (1917) desde o princípio de sua descoberta declarou que a psicanálise provocava resistências estruturais. As resistências de filósofos, psicólogos e médicos contra a nova ciência não se baseava somente no fato de a psicanálise ser um ramo recente do conhecimento ou por se fundar na sexualidade. Todavia, estas resistências se fundavam principalmente no eu e na consciência, em consequência destes pretenderem ter domínio sobre o psiquismo e as coisas. Portanto, a psicanálise infligiu à humanidade, segundo a declaração do próprio Freud, uma ferida narcísica, por conta dos descentramentos do psiquismo por ela fomentados (BIRMAM, 2003).
A psicanálise representaria a terceira ferida narcísica da humanidade, tendo sido precedida pelas revoluções de Nicolau Copérnico na cosmologia e por Darwin na biologia (BIRMAM, 2003). Com Copérnico a terra foi deslocada do centro do cosmo e inserida numa posição de pouca importância ao lado de outros planetas os quais girariam ao redor do sol. No tocante a Darwin o homem perdeu o seu lugar privilegiado na ordem natural, dentro da qual não passaria de um simples animal, produto de outras espécies da evolução biológica.
Segundo Freud (1917) a psicanálise teria retirado a derradeira âncora da pretensão da humanidade, o último lugar no qual se refugiava com sua suposta superioridade e soberba, ao declarar que a consciência não é soberana no psiquismo e que o eu não tem suficiente autonomia sobre este ser. Com efeito, a realidade psíquica se deslocou do âmbito da consciência e do eu para os registros do inconsciente que passa então a regê-la (FRANCO, 1995).
A primeira grande ruptura realizada por Freud (BIRMAM, 2003) a qual suscitou a revolta de filósofos, médicos e psicólogos, ocorreu no campo da psicologia clássica a qual se centrava no estudo das faculdades mentais, a saber, a sensação, a percepção, a atenção, a memória, a imaginação e o entendimento; faculdades estas que estavam referidas à consciência. O psíquico, então, segundo a psicologia clássica estava identificado com o ser da consciência. A subjetividade estava estruturada na consciência e nela estava o eu (BIRMAM, 2003). Com efeito, a psicologia clássica teve origem com a filosofia de Descartes e continuou com a tradição cartesiana, pois se fundava no paradigma racionalista, enfatizando o registro da cognição para a efetiva produção do conhecimento (BIRMAM, 2003). Escreve João Bosco Batista (2011) a respeito da ruptura permanente realizada por Freud em relação à psicologia clássica e à filosofia:
O freudismo apresenta uma difícil questão para o filósofo: o questionamento do sujeito pensante. O sujeito jamais é aquilo que se pensa crer que ele seja. Há um desapossamento radical do Cogito cartesiano. Freud apresenta a nudez da consciência narcísica imediata, tal como aparece em Descartes e perpassa o pensamento moderno. Em outras palavras, a hermenêutica da suspeita do sujeito desmorona a apoditicidade do “eu penso” que envolve, por sua vez, a dúvida quanto à natureza do “eu sou”. O resultado da hermenêutica psicanalítica desvela a impossibilidade de uma apreensão direta da consciência de si e por si.

Uma segunda ruptura reporta-se à racionalidade psiquiátrica (NUNES, 2011) a qual teve na histeria um de seus alicerces fundamentais. A histeria, em meados do século XIX era um dos principais campos de interesse psiquiátrico. Pelo que, se apresentava um verdadeiro enigma para uma medicina que fora construída sobre uma racionalidade que associava qualquer tipo de doença a uma lesão localizada no corpo do doente. Sob esta perspectiva de conceber as patologias estava implícita a crença num determinismo fisicalista. Escreve Joel Birman (2003) a respeito:
Freud partiu da experiência clínica no campo da neuropatologia, daquilo que se evidenciava como o seu impasse - a questão de histeria. Esta era enigmática justamente porque questionava a medicina no seu fundamento anátomo-clínico, pois apresentava uma série de sinais e sintomas que não podiam ser explicados pela anatomia patológica. Em decorrência disso, interpelava o discurso clínico, já que existiam nela sofrimento e sintomas corpóreos, mas sem a evidência de qualquer lesão anatômica.

Freud desenvolveu, portanto, a hipótese de que os sintomas corporais da histeria não podiam ser explicados pela racionalidade anatomoclínica porque não estavam em conexão com a realidade anatômica, mas com uma imagem interna que o paciente possuía de seu próprio corpo (VALINIEFF, 1971). Para Freud, portanto, os sintomas histéricos estavam relacionados com uma representação psíquica do corpo, um corpo representado, e não com a estrutura do corpo anatômico, deslocando a histeria de um paradigma centrado na anatomia para a representação psíquica.



3. A influência de Charcot e o vislumbre do inconsciente

Sigmund Freud esteve em Paris de 13 de outubro de 1885 a 28 de fevereiro de 1886, e por dezessete semanas desse período foi um assistente regular da clínica de Charcot.  Richard Wollhein (1976) destaca três lições aprendidas por Freud neste contato com Charcot as quais foram cruciais para o surgimento da psicanálise.
A primeira lição consiste na rejeição de Charcot para com o diagnóstico tradicional da histeria, este remontava à antiguidade e atribuía à doença ora a imaginação, ora a uma doença no útero. De maneira irônica, foi a insistência de Charcot sobre este assunto e a sua proposta de estudo e diagnóstico da histeria como um distúrbio nervoso que, durante um grande período de tempo, influenciou Freud contra qualquer etiologia sexual para as neuroses (WOLHEIN, 1976).
A segunda lição foi a descoberta de Charcot (citado em WOLHEIN, 1976) sobre as histerias traumáticas, oriundas de acidentes, nas quais os sintomas não são delimitados em consonância com a anatomia do sistema nervoso, mas por referência às representações triviais do corpo:
Assim, por exemplo, uma histérica terá uma paralisia na perna, no sentido deste membro todo, até a sua inserção na anca, ou no braço, significando aquela parte do corpo que um vestido sem mangas deixa a descoberto, embora nenhuma dessas áreas corresponda a um agrupamento neurofisiológico. A histeria, como Freud disse, “comporta-se como se a anatomia não existisse, ou como se não tomasse conhecimento dela” (WOLLHEIN, 1976).

A terceira lição consiste na descoberta da existência de uma estreita ligação entre a histeria e a ciência da hipnose, na medida em que os sintomas histéricos podiam efetivamente ser simulados em pacientes que não sofriam de histeria por meio da pura sugestão hipnótica. De maneira invertida, os sintomas de histéricos traumáticos podiam ser removidos por sugestão hipnótica (WOLLHEIM, 1976).
A partir destas lições pode-se vislumbrar a ruptura subsequente que iria ocorrer  no tocante à crença comum dos psiquiatras contemporâneos a Freud, para os quais a origem das neuroses era vista como estritamente orgânica. Com efeito, as descobertas de Charcot, acerca da histeria, mostraram que para além das implicações orgânicas, no caso de um grande número de sintomas histéricos, as ideias e conceitos têm influência na gênese, manutenção e extirpação dos sintomas. Portanto, pode-se dizer que os sintomas são ideogênicos (WOLLHEIM, 1976).  Todavia, se por um lado a descoberta de Charcot do poder das ideias num distúrbio neurótico foi fundamental para a origem da psicanálise, no próprio pensamento de Charcot ela desempenhou um papel estritamente limitado, pois para Charcot a capacidade  de desenvolvimento da doença  ainda estava estreitamente relacionada a uma deterioração hereditária do cérebro (WOLLHEIM, 1976).

4. O primeiro esboço da elaboração de um método para a cura da histeria pela hipnose em associação com Breuer

Nos anos de 1880 e 1881, o doutor Joseph Breuer, da cidade de Viena, tinha submetido uma jovem, a qual havia sofrido gravemente de histeria, a um tratamento. O quadro da doença se caracterizava por paralisias motoras, inibições e perturbações da consciência. E seguindo a orientação da própria paciente, este médico empregou a técnica do hipnotismo e verificou que todas as vezes em que ela lhe comunicava as afecções  e as ideias que a dominavam, voltava ao estado psíquico normal. Mediante a repetição conseguiu libertá-la de todas as suas inibições e paralisias. Segundo Freud (1914), Breuer se absteve de levar adiante sua descoberta, até que no seu retorno a Viena em 1886, depois de conseguir um curso na Clínica de Charcot, foi convencido por Freud a trabalhar com o tema. Posteriormente, em 1893 e 1895 publicaram respectivamente Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos e Estudos sobre a histeria (CLARET, 2011).
A partir das investigações de Freud e Breuer (1891), dois resultados podiam ser deduzidos. Em primeiro lugar que os sintomas histéricos possuem um sentido e uma significação, sendo substitutivos de atos psíquicos normais. Em segundo lugar, a descoberta que tal sentido oculto, coincide com a supressão dos sintomas (BIRMAM, 2009). As observações em consideração tinham sido feitas numa série de pacientes tratados por meio do hipnotismo, cujos resultados pareciam muito bons, todavia, como o tempo revelou-se a fraqueza do método.
Segundo Freud (1910), o fator afetivo apareceu em primeiro lugar entre suas hipóteses que buscavam explicar a histeria. Para Freud (1910): os sintomas teriam sua origem no fato de que um processo psíquico carregado de intenso afeto fosse impedido, de algum modo, de sua descarga pelo caminho normal. Por conseguinte, o afeto assim reprimido tomava vias inadequadas e encontrava um escape na inervação somática, chamada pela psicanálise de conversão. Escreve Sigmund Freud (1910):
Às ocasiões nas quais surgiam tais representações patogênicas demos, Breuer e eu o nome de traumas psíquicos, e como pertenciam muitas vezes a tempos muito recuados, podíamos dizer que histéricos sofriam predominantemente de reminiscências. A Catarse era então, levada a cabo no tratamento por meio da abertura do caminho conducente à consciência e descarga normal do afeto.

A hipótese levantada por Breuer e Freud (1891) a respeito da existência de processos psíquicos inconscientes era um elemento imprescindível para a construção da teoria Psicanalítica. Com efeito, para Freud (1891) o sintoma histérico podia ser curado conversando-se a respeito e este processo ocorria, nesta fase da psicanálise, por meio da indução à um  estado hipnótico; o qual para ter “eficácia” era necessário recitar a causa originadora do sintoma.  Portanto, a hipnose era um método aplicado para adquirir a origem de um sintoma, o qual foi adquirido num estado de consciência paralelo à hipnose e, até que a cura fosse conquistada, os sintomas podiam aparecer num estado de consciência normal, todavia, o estímulo permanecia no inconsciente (WOLLHEIM, 1976). Convém destacar que o psicólogo Pierre Janet (MESAN, 2008) havia trabalhado com atos psíquicos inconscientes, o que para Freud não passava de uma expressão auxiliar com a qual não pretendia indicar uma nova ciência.

5. Associação livre: a passagem da hipnose à psicanálise

Desde a obra escrita por Freud e Breuer chamada Estudos sobre histeria (1891) já havia algumas dissonâncias entre eles. Breuer defendia que as representações patológicas exerciam ação traumática porque haviam surgido em estados hipnoides, nos quais a função anímica sucumbe a determinadas restrições. Entretanto, Freud, rejeitava tal explicação defendendo que uma representação torna-se patológica quando seu conteúdo repugna as tendências dominantes da vida anímica, causando a defesa do indivíduo (MESAN, 2008).
Freud conseguiu realizar duas inovações depois de concluída sua colaboração com Breuer. A primeira delas se baseava numa experiência prática que conduzia a uma transformação da técnica.  A segunda consistia num adiantamento no conhecimento clínico da neurose.  Segundo Freud as aspirações terapêuticas baseadas no tratamento catártico, em conexão com a hipnose não chegavam a cumprir seu papel de cura. Paralelamente ao emprego do método catártico, havia o desaparecimento dos sintomas, todavia, o resultado final revelava-se totalmente dependente da relação do paciente com o terapeuta e da sugestão feita por este último. No momento em que havia o rompimento entre médico e paciente, apareciam novamente os sintomas, como se não tivesse ocorrido cura alguma. Freud destaca outro problema: somente um pequeno número de pessoas era submetido a uma hipnose profunda. Portanto, os problemas apontados sobre a ação limitada da hipnose conduziu Freud a prescindir do método catártico (MESAN, 2008).
Sigmund Freud (1910) percebeu que o estado hipnótico produzia no paciente tal ampliação da capacidade de associação, que ele mesmo sabia encontrar no momento o caminho, não acessível a sua reflexão consciente, do sintoma até as representações e reminiscências a ele ligadas. A partir desta constatação Freud levou seus pacientes não hipnotizados a relatarem suas associações, para encontrar, com o auxilio deste material, a via conducente ao esquecido e ao recalcado. Freud também observou que não era preciso pressionar o indivíduo, pois o próprio paciente quase sempre  realizava numerosas associações, as quais eram desviadas da comunicação e da consciência por certas objeções feitas por si mesmo. Portanto, tudo o que o paciente associara a certo ponto de partida tinha de achar-se também em conexão interna com ele mesmo, o que resultou na técnica em persuadir o paciente a renunciar toda atitude crítica e utilizar o material de associações para a descoberta das conexões procuradas (MESAN, 2008).
O processo de associação livre tem sido conservado no método analítico como a regra técnica fundamental em substituição ao método catártico. Tal processo inicia-se, então, convidando o paciente a se colocar na posição de auto-observador atento e desapaixonado, limitando-se a ler a superfície de sua consciência e se obrigando a uma sinceridade irrestrita e sem excluir da consciência qualquer associação, apesar de ser desagradável, pois se deve transmiti-la mesmo que a julgue irrelevante. Com efeito, foi demonstrado com regularidade que aquelas ocorrências que provocavam as objeções do consciente encerravam grande valor para o encontro do recalcado. Portanto, nas neuroses, a técnica freudiana permitiu fazer cessar, durante o período da sessão, o conflito entre o consciente e o inconsciente. Através do procedimento das associações livres o paciente pode dizer tudo o que passa por sua mente. O inconsciente se utiliza desta situação para exprimir-se. O paciente se recorda de elementos de sua vida que até aquele momento tinha esquecido e reconhece fatos de sua existência que tinha cuidadosamente escondido em algum lugar de sua memória. Desta maneira, protegido pelo psicanalista que se limita a ser uma ajuda, um mero guia nesse processo de pesquisa, o analisando toma consciência de todos os elementos de si mesmo, que num primeiro momento era impedido de conhecer. Com efeito, é imprescindível, portanto, que o analisando tome consciência do que se passa, pois é o único meio de fazê-lo aceitar os fatos que estão frequentemente em flagrante contradição com o que se expressa ou com a maneira como tem de agir fora da clínica (VALINIEFF,1971).

6.      A primeira tópica: o inconsciente e o pré-consciente/consciente

Sigmund Freud, após o descentramento da consciência de seu soberano lugar, desenvolveu um novo modelo de aparelho psíquico, constituído por diferentes registros, a saber, o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, no qual o inconsciente veio a ocupar o lugar de preeminência. Sob este modelo existem dois grupos de representações psíquicas (FREUD, 1915). O primeiro é pertencente ao sistema inconsciente, o qual é regido pelo princípio de prazer e tende a procurar escoar o acúmulo de tensão que lhe é intrínseco, procurando descarregá-la o mais rápido possível. O segundo pertence ao sistema pré-consciente/consciente e se opõe a descarga imediata da tensão oriunda do inconsciente, harmonizando-a ao princípio de realidade. Segundo esta perspectiva, então, o aparelho psíquico seria dotado de uma dinâmica, havendo um conflito psíquico na medida em que as representações inconscientes pressionariam no sentido de ter acesso à consciência e à ação, em contrapartida, o registro pré-consciente/consciente se oporia a este impulso através do recalque. Segundo Freud o aparelho psíquico com suas partes é regido por leis distintas: o processo primário regendo o inconsciente e o processo secundário o pré-consciente/ consciente. No processo primário a energia pulsional corre livremente, e visa descarregar esta energia pela satisfação imediata de prazer. No processo secundário, a energia não estaria livre, investindo representações de maneira estável, culminando no adiamento da satisfação. Com efeito, a oposição entre processo primário e processo secundário seria correspondente à oposição entre o princípio de prazer e princípio de realidade. Portanto, a partir desta nova concepção do aparelho psíquico, Freud estabelece o fundamento para o edifício conceitual da psicanálise, conhecimento este radicalmente distinto da psicologia clássica (ligada ao cartesianismo) e da psiquiatria (BIRMAM, 2009).

7.      A segunda tópica: a psicanálise e seu fundamento epistemológico

Nos anos iniciais do século XX houve uma intensa e efetiva contestação da cientificidade da psicanálise, o que levou Freud a enfatizar a cientificidade da nova ciência por meio de sua publicação Os instintos e suas vicissitudes (1915). Esta contestação, como vimos, era oriunda de filósofos, psicólogos e médicos, os quais contestavam a pretensão à cientificidade por parte da psicanálise.  Com efeito, esta rejeição teve início desde que Freud realizou uma conferência em Viena, em 1886, na qual apresentou a teoria do trauma e da sedução das psiconeuroses. Nesta ocasião suas teorias foram consideradas “um conto de fadas científico” pelo eminente Krafft Ebing, que escrevera uma obra de referencia da sexologia chamada psicopatia sexualis. Em 1900, ao publicar A interpretação dos sonhos, o não reconhecimento científico persistiu a ponto de seu tratado ser considerado um trabalho estético sobre os sonhos e não como uma teoria científica.
Segundo o Empirismo lógico[1], a condição para legitimar e reconhecer cientificamente um enunciado teórico seria a possibilidade de verificá-lo empiricamente, desta maneira os enunciados científicos seriam dotados de sentido. E o que se colocava, então, para a psicanalise era a impossibilidade de verificação dos enunciados metapsicológicos, como os conceitos de instinto (ou pulsão) de vida e de morte. Estes, por sua vez, não teriam sentido, pois não poderiam ser verificados empiricamente. Portanto, foi por causa destas oposições que Freud retomou a problemática da fundação epistemológica da psicanálise na sua obra Os instintos e suas vicissitudes (1915) para oferecer uma justificativa para a metapsicologia e para a psicanálise, juntamente com diversas monografias clínicas com preocupações epistemológicas, além de promover a difusão da psicanálise e a formação de analistas (BIRMAM, 2009).
Até o presente momento nota-se a irrefutabilidade da existência de um registro inconsciente no psiquismo humano, registro este ratificado pela experiência clínica, da qual surgiu legitimamente uma nova ciência: a ciência que possui por objeto material os processos inconscientes. Todavia, não seria possível para Freud desenvolver os conceitos fundamentais da psicanálise sem uma epistemologia, sem a qual também não é possível a construção metodológica de qualquer discurso científico, pois, com efeito, necessariamente um existe em referência a outro.
A argumentação freudiana é simultaneamente simples e clara ao sustentar a cientificidade da psicanálise, pois, a psicanálise não empregaria nenhum procedimento distinto daquele realizado no campo dos demais discursos científicos. A psicanálise deve ter o mesmo tratamento reservado às demais ciências. Desta forma, é preciso enfatizar que as ciências em geral não surgiram conceitualmente prontas. Com efeito, todas demoraram muito até fixarem seus conceitos fundamentais e sua metodologia. Ademais, não foi pela construção clara e bem definida destes que as ciências foram estabelecidas e reconhecidas. Foi preciso, portanto, que elas ultrapassassem momentos de dúvida até que seus conceitos fundamentais pudessem ser estabelecidos. Com efeito, ao comparar a psicanálise com a medicina, por exemplo, é possível afirmar que a segunda possui por objeto material definido o corpo humano, e como objeto formal, o conhecimento da causa das doenças com o intuito de atenuá-las e promover a saúde. Por seu turno, a psicanálise, em síntese, possui por objeto material o inconsciente e por objeto formal a etiologia das neuroses, seu significado subjetivo, objetivando, por conseguinte, sua cura pelo método da associação livre[2]. Assim como o corpo humano e as doenças são dados empíricos imediatos na medicina (não obstante seus desenvolvimentos históricos, desde Hipócrates até os nossos dias, ora abandonando conceitos, ora aprimorando-os), a psicanálise, igualmente, possui seu objeto material de estudo na qualidade de dado inegável da experiência, a saber, o inconsciente e suas manifestações, sobre o qual, então, deve erigir seu edifício conceitual. . Escreve Freud (1915) em seu texto: Os instintos e suas vicissitudes:
Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área.

Sigmund Freud, ao posicionar-se desta maneira reportava-se explicitamente ao campo das ciências naturais, as quais representavam os modelos teóricos incontestáveis daquilo que deveria ser uma ciência em sentido estrito, dentre elas a física, a química e a biologia. Portanto, é em relação a estas disciplinas que Freud procurou tecer seu argumento de defesa da cientificidade da psicanálise, assegurando que, para que as ciências da natureza pudessem fixar os seus conceitos fundamentais, fora necessário um grande período de tempo até as proposições teóricas primordiais fossem transformadas. Segundo Freud (1915):
O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual os mesmos “conceitos básicos” que tenham sido estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo.

 Destarte, a reivindicação de Freud consistia no desejo de que filósofos, psicólogos e homens de ciência em geral, tivessem em relação à psicanálise a mesma flexibilidade e paciência teóricas que tiveram seus antepassados na história da formação das diversas ciências. Com efeito, a psicanálise por ser uma ciência nova, portanto, ainda estaria atuando na fixação de suas bases e no enunciado de seus conceitos fundamentais como no passado já havia ocorrido com os outros discursos científicos.

 Considerações finais

Após a publicação do livro organizado por Catherine Meyer chamado O Livro negro da psicanálise, muitos leigos, especialmente no Brasil, chegaram  afirmar que esta compilação de artigos tinha sido o último golpe contra a cientificidade da psicanálise. Todavia, o que muitos não sabem é que o livro foi projetado por psicólogos da vertente cognitivista comportamental (TCC), e longe de existir um exame criterioso e honesto das concepções de Freud, o que existe é uma cega apologia desta corrente teórica e sua terapia (sem desprezar seus méritos), configurando a disputa mais mercadológica do que científica[3].
Consoante todas as considerações feitas em defesa da psicanálise, vimos que esta ciência já nasceu sofrendo duras críticas, portanto, não é uma novidade a rejeição (por parte de pessoas como Catherine Meyer) daquilo que o próprio Freud denominou “a praga”. Com efeito, o autor deste artigo considerou as razões apontadas por Freud, as quais foram desenvolvidas no presente trabalho, a saber, o descentramento do eu e o ataque ao narcisismo da humanidade. Fatores que são apontados como aqueles que causam rejeição à Psicanálise. Procurou-se justificar a psicanálise como uma legítima ciência demonstrando a veracidade da existência do inconsciente (seu objeto material), partindo das experiências na clínica de Charcot, do relacionamento com Breuer, do surgimento de um primeiro esboço do método de cura das neuroses pela hipnose, até o desenvolvimento do método da associação livre. Este trabalho também poderia explorar os casos clínicos de cura das neuroses, como por exemplo, o de Katharina (Aurelia Kronich), Dora (Ida Bauer), Emmy von N. (Fanny Moser) entre outros, que provariam a eficácia do método terapêutico da psicanálise. Todavia, o autor opta por desenvolver os conceitos e não descrever os casos concretos de cura, os quais podem ser complementarmente estudados pelo leitor. Finalmente, o autor mostrou brevemente a justificativa epistemológica feita por Freud na segunda tópica, especificamente nos escritos metapsicológicos, segundo a qual, a psicanálise como qualquer outra ciência, não possui todos os seus conceitos acabados, cabendo, então, aos psicanalistas sua busca constante por aprimoramento, conforme ocorreu e ainda ocorre com todas as demais ciências.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Martins Fontes. São Paulo: 2003.
BATISTA, João Bosco. Considerações acerca do tema do Cogito ferido em Freud e a tarefa de reconstrução do conceito de sujeito em Ricoeur: prolegômenos para uma ética. Revista estudos filosóficos nº 6. Universidade Federal de São Joao Del-Rei (UFSJ). Minas Gerais: 2011. 
BIRMAM, Joel. Freud e a filosofia. Jorge Zahar editor. Rio de Janeiro: 2003
BIRMAM, Joel. As pulsões e seus destinos. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2009
BRABANT, Georges Philippe. Chaves da psicanálise. Zahar editores. Rio de Janeiro: 1973.
CLARET, Martin (org.). Freud: por ele mesmo. Martin Claret. São Paulo: 2011.
FRANCO, Sérgio de Golvêa. Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricoeur. Edições Loyola. São Paulo: 1995.
FREUD, Sigmund. Artigos sobre metapsicologia. Imago. Rio de Janeiro: 2004.
MARITAIN, Jacques. Introdução geral à filosofia. Agir. Rio de Janeiro: 1994.
MESAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. Perspectiva. São Paulo: 2008.
NUNES, Silvia Alexim. A psicologia da vida cotidiana. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2011.
VALINIEFF. Pierre. Psicanálise e complexos. Edições MM. Rio de Janeiro: 1971.
WOLLHEIN, Richard. As ideias de Freud. Editora Cultrix. São Paulo: 1976.



[1] Orientação instaurada pelo Círculo de Viena no século XIX e depois seguida por outros pensadores, especialmente na Inglaterra e América do Norte. Suas principais teses são: os enunciados factuais, isto é, que se referem a coisas existentes, só tem significado se forem empiricamente verificáveis; existem enunciados não verificáveis, mas verdadeiros com base nos próprios termos que os compõe; tais enunciados são tautológicos, ou seja, não afirmam nada a respeito da realidade. Em suma, todos os enunciados metafísicos não desprovidos de sentido porque não são verificáveis empiricamente (Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano).
[2] Segundo Jacques Maritain, toda investigação humana que possui um objeto material (objectum materiale), isto é, aquilo que se estuda especificamente; e um objeto formal (objectum formale) que é o ponto de vista sob o qual o objeto é estudado, isto é, o conhecimento pelas causas, recebe o estatuto de ciência. Neste sentido a psicanálise pode ser legitimamente reconhecida como uma ciência por cumprir estes requisitos (Introdução geral à filosofia, págs. 68-70).
[3] Conferir o artigo Do ataque à defesa, de C. Lúcia. M. Valladares de oliveira, publicado pela revista Mente e Cérebro, edição especial, nº 24, p.22.