RESUMO
O presente
artigo tem o objetivo de apresentar, num primeiro momento, o movimento de
construção e de busca da cientificidade da psicanálise, a partir da
justificação epistemológica da existência do inconsciente. Esta justificação é
crucial, pois é o próprio objeto material da psicanálise, sobre o qual, então,
todo um edifício conceitual poderá ser erigido, incluindo a possibilidade de
cura das neuroses. Para tanto, este trabalho busca delinear o itinerário
experiencial e teórico desenvolvido por Freud desde suas experiências com a
clínica de Charcot; o relacionamento com Breuer; a elaboração da catarse; o
vislumbre do registro do inconsciente; até o surgimento do método da associação
livre e a conceituação do aparelho psíquico na primeira tópica. Num segundo momento,
este artigo aborda a segunda tópica do desenvolvimento teórico da psicanálise,
a qual versa sobre os textos metapsicológicos através dos quais, Freud esboça
uma epistemologia em defesa da cientificidade da psicanálise.
PALAVRAS–CHAVE:
epistemologia, filosofia, psicanálise, inconsciente
1. Introdução
Qual
é o critério epistêmico que faculta à psicanálise a realização das suas afirmações
mais fundamentais sobre a possibilidade da cura através do seu método
terapêutico? Para compreender o surgimento e o método de trabalho desenvolvido
pela psicanálise é essencial buscar a sua história, desde a sua epistemologia e
o seu percurso.
A
epistemologia, em linhas gerais, é a parte da filosofia que procura estabelecer
o critério, as condições e os limites do conhecimento humano. A epistemologia
também recebe o nome de Crítica, Gnosiologia ou Teoria do conhecimento. Com
efeito, toda ciência que pretende fundamentar racionalmente suas hipóteses, não
pode prescindir de uma epistemologia.
Com
efeito, desde a origem da psicanálise, houve uma série de críticas realizadas
por psicólogos, médicos e filósofos no tocante à validade científica das
afirmações feitas por Freud. A principal crítica foi lançada sobre a existência
do inconsciente como lugar central do psiquismo humano e determinante dos
comportamentos. Freud, como ele mesmo afirma, realizou a terceira grande ferida
narcísica na humanidade ao descentralizar o poder do ego ou da consciência para
determinar nossas ações.
Portanto,
a existência da psicanálise como ciência, depende da fundamentação epistemológica
da descoberta do inconsciente, pois a possibilidade da cura através do método
psicanalítico, assim como a verossimilhança de seu cabedal conceitual, é
dependente da existência efetiva deste registro. Pois, se a cura das neuroses, só é possível
através do acesso à sua etiologia pelo método da interpretação da associação
livre que substituiu a tentativa de cura pela hipnose, então, será necessário oferecer
o fundamento (teórico e empírico) exigido até então, do qual dependerá a
validade e eficácia do método terapêutico fundado por Freud. Portanto,
o que ao autor deste trabalho procura desenvolver subsequentemente objetiva
oferecer uma demonstração e justificação (a partir da experiência clínica
freudiana) da existência de um registro inconsciente no psiquismo humano, a
partir do qual será possível tatear na fixação de bases e no enunciado de
conceitos, visando o estabelecimento legítimo de uma ciência psicanalítica, e
em contínuo progresso, conforme ocorreu com outros discursos científicos.
2. A invenção da Psicanálise: rupturas e
revoltas
Sigmund
Freud (1917) desde o princípio de sua descoberta declarou que a psicanálise
provocava resistências estruturais. As resistências de filósofos, psicólogos e
médicos contra a nova ciência não se baseava somente no fato de a psicanálise
ser um ramo recente do conhecimento ou por se fundar na sexualidade. Todavia, estas
resistências se fundavam principalmente no eu e na consciência, em consequência
destes pretenderem ter domínio sobre o psiquismo e as coisas. Portanto, a psicanálise
infligiu à humanidade, segundo a declaração do próprio Freud, uma ferida
narcísica, por conta dos descentramentos do psiquismo por ela fomentados
(BIRMAM, 2003).
A
psicanálise representaria a terceira ferida narcísica da humanidade, tendo sido
precedida pelas revoluções de Nicolau Copérnico na cosmologia e por Darwin na
biologia (BIRMAM, 2003). Com Copérnico a terra foi deslocada do centro do cosmo
e inserida numa posição de pouca importância ao lado de outros planetas os
quais girariam ao redor do sol. No tocante a Darwin o homem perdeu o seu lugar
privilegiado na ordem natural, dentro da qual não passaria de um simples
animal, produto de outras espécies da evolução biológica.
Segundo
Freud (1917) a psicanálise teria retirado a derradeira âncora da pretensão da
humanidade, o último lugar no qual se refugiava com sua suposta superioridade e
soberba, ao declarar que a consciência não é soberana no psiquismo e que o eu
não tem suficiente autonomia sobre este ser. Com efeito, a realidade psíquica
se deslocou do âmbito da consciência e do eu para os registros do inconsciente
que passa então a regê-la (FRANCO, 1995).
A
primeira grande ruptura realizada por Freud (BIRMAM, 2003) a qual suscitou a
revolta de filósofos, médicos e psicólogos, ocorreu no campo da psicologia
clássica a qual se centrava no estudo das faculdades mentais, a saber, a
sensação, a percepção, a atenção, a memória, a imaginação e o entendimento;
faculdades estas que estavam referidas à consciência. O psíquico, então,
segundo a psicologia clássica estava identificado com o ser da consciência. A
subjetividade estava estruturada na consciência e nela estava o eu (BIRMAM,
2003). Com efeito, a psicologia clássica teve origem com a filosofia de
Descartes e continuou com a tradição cartesiana, pois se fundava no paradigma
racionalista, enfatizando o registro da cognição para a efetiva produção do
conhecimento (BIRMAM, 2003). Escreve João Bosco Batista (2011) a respeito da ruptura
permanente realizada por Freud em relação à psicologia clássica e à filosofia:
O
freudismo apresenta uma difícil questão para o filósofo: o questionamento do
sujeito pensante. O sujeito jamais é aquilo que se pensa crer que ele seja. Há
um desapossamento radical do Cogito cartesiano. Freud apresenta a nudez da
consciência narcísica imediata, tal como aparece em Descartes e perpassa o
pensamento moderno. Em outras palavras, a hermenêutica da suspeita do sujeito
desmorona a apoditicidade do “eu penso” que envolve, por sua vez, a dúvida
quanto à natureza do “eu sou”. O resultado da hermenêutica psicanalítica
desvela a impossibilidade de uma apreensão direta da consciência de si e por si.
Uma
segunda ruptura reporta-se à racionalidade psiquiátrica (NUNES, 2011) a qual
teve na histeria um de seus alicerces fundamentais. A histeria, em meados do
século XIX era um dos principais campos de interesse psiquiátrico. Pelo que, se
apresentava um verdadeiro enigma para uma medicina que fora construída sobre
uma racionalidade que associava qualquer tipo de doença a uma lesão localizada
no corpo do doente. Sob esta perspectiva de conceber as patologias estava
implícita a crença num determinismo fisicalista. Escreve Joel Birman (2003) a
respeito:
Freud
partiu da experiência clínica no campo da neuropatologia, daquilo que se evidenciava
como o seu impasse - a questão de histeria. Esta era enigmática justamente
porque questionava a medicina no seu fundamento anátomo-clínico, pois apresentava
uma série de sinais e sintomas que não podiam ser explicados pela anatomia
patológica. Em decorrência disso, interpelava o discurso clínico, já que
existiam nela sofrimento e sintomas corpóreos, mas sem a evidência de qualquer
lesão anatômica.
Freud
desenvolveu, portanto, a hipótese de que os sintomas corporais da histeria não
podiam ser explicados pela racionalidade anatomoclínica porque não estavam em
conexão com a realidade anatômica, mas com uma imagem interna que o paciente
possuía de seu próprio corpo (VALINIEFF, 1971). Para Freud,
portanto, os sintomas histéricos estavam relacionados com uma representação
psíquica do corpo, um corpo representado, e não com a estrutura do corpo
anatômico, deslocando a histeria de um paradigma centrado na anatomia para a
representação psíquica.
3.
A influência de Charcot e o vislumbre do inconsciente
Sigmund
Freud esteve em Paris de 13 de outubro de 1885 a 28 de fevereiro de 1886, e por
dezessete semanas desse período foi um assistente regular da clínica de
Charcot. Richard Wollhein (1976) destaca
três lições aprendidas por Freud neste contato com Charcot as quais foram
cruciais para o surgimento da psicanálise.
A
primeira lição consiste na rejeição de Charcot para com o diagnóstico
tradicional da histeria, este remontava à antiguidade e atribuía à doença ora a
imaginação, ora a uma doença no útero. De maneira irônica, foi a insistência de
Charcot sobre este assunto e a sua proposta de estudo e diagnóstico da histeria
como um distúrbio nervoso que, durante um grande período de tempo, influenciou
Freud contra qualquer etiologia sexual para as neuroses (WOLHEIN, 1976).
A
segunda lição foi a descoberta de Charcot (citado em WOLHEIN, 1976) sobre as
histerias traumáticas, oriundas de acidentes, nas quais os sintomas não são
delimitados em consonância com a anatomia do sistema nervoso, mas por
referência às representações triviais do corpo:
Assim,
por exemplo, uma histérica terá uma paralisia na perna, no sentido deste membro
todo, até a sua inserção na anca, ou no braço, significando aquela parte do
corpo que um vestido sem mangas deixa a descoberto, embora nenhuma dessas áreas
corresponda a um agrupamento neurofisiológico. A histeria, como Freud disse, “comporta-se como se a anatomia não existisse,
ou como se não tomasse conhecimento dela” (WOLLHEIN, 1976).
A
terceira lição consiste na descoberta da existência de uma estreita ligação
entre a histeria e a ciência da hipnose, na medida em que os sintomas
histéricos podiam efetivamente ser simulados em pacientes que não sofriam de
histeria por meio da pura sugestão hipnótica. De maneira invertida, os sintomas
de histéricos traumáticos podiam ser removidos por sugestão hipnótica (WOLLHEIM,
1976).
A
partir destas lições pode-se vislumbrar a ruptura subsequente que iria
ocorrer no tocante à crença comum dos
psiquiatras contemporâneos a Freud, para os quais a origem das neuroses era
vista como estritamente orgânica. Com efeito, as descobertas de Charcot, acerca
da histeria, mostraram que para além das implicações orgânicas, no caso de um
grande número de sintomas histéricos, as ideias e conceitos têm influência na
gênese, manutenção e extirpação dos sintomas. Portanto, pode-se dizer que os
sintomas são ideogênicos (WOLLHEIM, 1976).
Todavia, se por um lado a descoberta de Charcot do poder das ideias num
distúrbio neurótico foi fundamental para a origem da psicanálise, no próprio
pensamento de Charcot ela desempenhou um papel estritamente limitado, pois para
Charcot a capacidade de desenvolvimento
da doença ainda estava estreitamente
relacionada a uma deterioração hereditária do cérebro (WOLLHEIM, 1976).
4. O primeiro esboço
da elaboração de um método para a cura da histeria pela hipnose em associação
com Breuer
Nos
anos de 1880 e 1881, o doutor Joseph Breuer, da cidade de Viena, tinha
submetido uma jovem, a qual havia sofrido gravemente de histeria, a um
tratamento. O quadro da doença se caracterizava por paralisias motoras,
inibições e perturbações da consciência. E seguindo a orientação da própria
paciente, este médico empregou a técnica do hipnotismo e verificou que todas as
vezes em que ela lhe comunicava as afecções
e as ideias que a dominavam, voltava ao estado psíquico normal. Mediante
a repetição conseguiu libertá-la de todas as suas inibições e paralisias.
Segundo Freud (1914), Breuer se absteve de levar adiante sua descoberta, até
que no seu retorno a Viena em 1886, depois de conseguir um curso na Clínica de
Charcot, foi convencido por Freud a trabalhar com o tema. Posteriormente, em
1893 e 1895 publicaram respectivamente Sobre
o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos e Estudos sobre a histeria (CLARET, 2011).
A
partir das investigações de Freud e Breuer (1891), dois resultados podiam ser
deduzidos. Em primeiro lugar que os sintomas histéricos possuem um sentido e
uma significação, sendo substitutivos de atos psíquicos normais. Em segundo
lugar, a descoberta que tal sentido oculto, coincide com a supressão dos
sintomas (BIRMAM, 2009). As observações em consideração tinham sido feitas numa
série de pacientes tratados por meio do hipnotismo, cujos resultados pareciam
muito bons, todavia, como o tempo revelou-se a fraqueza do método.
Segundo
Freud (1910), o fator afetivo apareceu em primeiro lugar entre suas hipóteses
que buscavam explicar a histeria. Para Freud (1910): os sintomas teriam sua
origem no fato de que um processo psíquico carregado de intenso afeto fosse
impedido, de algum modo, de sua descarga pelo caminho normal. Por conseguinte,
o afeto assim reprimido tomava vias inadequadas e encontrava um escape na
inervação somática, chamada pela psicanálise de conversão. Escreve Sigmund
Freud (1910):
Às
ocasiões nas quais surgiam tais representações patogênicas demos, Breuer e eu o
nome de traumas psíquicos, e como pertenciam muitas vezes a tempos muito
recuados, podíamos dizer que histéricos sofriam predominantemente de reminiscências.
A Catarse era então, levada a cabo no tratamento por meio da abertura do
caminho conducente à consciência e descarga normal do afeto.
A
hipótese levantada por Breuer e Freud (1891) a respeito da existência de
processos psíquicos inconscientes era um elemento imprescindível para a
construção da teoria Psicanalítica. Com efeito, para Freud (1891) o sintoma
histérico podia ser curado conversando-se a respeito e este processo ocorria,
nesta fase da psicanálise, por meio da indução à um estado hipnótico; o qual para ter “eficácia”
era necessário recitar a causa originadora do sintoma. Portanto, a hipnose era um método aplicado
para adquirir a origem de um sintoma, o qual foi adquirido num estado de
consciência paralelo à hipnose e, até que a cura fosse conquistada, os sintomas
podiam aparecer num estado de consciência normal, todavia, o estímulo permanecia
no inconsciente (WOLLHEIM, 1976). Convém destacar que o psicólogo Pierre Janet
(MESAN, 2008) havia trabalhado com atos psíquicos inconscientes, o que para
Freud não passava de uma expressão auxiliar com a qual não pretendia indicar
uma nova ciência.
5.
Associação livre: a passagem da hipnose à psicanálise
Desde
a obra escrita por Freud e Breuer chamada Estudos
sobre histeria (1891) já havia algumas dissonâncias entre eles. Breuer
defendia que as representações patológicas exerciam ação traumática porque
haviam surgido em estados hipnoides, nos quais a função anímica sucumbe a
determinadas restrições. Entretanto, Freud, rejeitava tal explicação defendendo
que uma representação torna-se patológica quando seu conteúdo repugna as
tendências dominantes da vida anímica, causando a defesa do indivíduo (MESAN,
2008).
Freud
conseguiu realizar duas inovações depois de concluída sua colaboração com
Breuer. A primeira delas se baseava numa experiência prática que conduzia a uma
transformação da técnica. A segunda
consistia num adiantamento no conhecimento clínico da neurose. Segundo Freud as aspirações terapêuticas
baseadas no tratamento catártico, em conexão com a hipnose não chegavam a
cumprir seu papel de cura. Paralelamente ao emprego do método catártico, havia
o desaparecimento dos sintomas, todavia, o resultado final revelava-se
totalmente dependente da relação do paciente com o terapeuta e da sugestão
feita por este último. No momento em que havia o rompimento entre médico e
paciente, apareciam novamente os sintomas, como se não tivesse ocorrido cura
alguma. Freud destaca outro problema: somente um pequeno número de pessoas era
submetido a uma hipnose profunda. Portanto, os problemas apontados sobre a ação
limitada da hipnose conduziu Freud a prescindir do método catártico (MESAN,
2008).
Sigmund
Freud (1910) percebeu que o estado hipnótico produzia no paciente tal ampliação
da capacidade de associação, que ele mesmo sabia encontrar no momento o
caminho, não acessível a sua reflexão consciente, do sintoma até as
representações e reminiscências a ele ligadas. A partir desta constatação Freud
levou seus pacientes não hipnotizados a relatarem suas associações, para
encontrar, com o auxilio deste material, a via conducente ao esquecido e ao
recalcado. Freud também observou que não era preciso pressionar o indivíduo,
pois o próprio paciente quase sempre
realizava numerosas associações, as quais eram desviadas da comunicação
e da consciência por certas objeções feitas por si mesmo. Portanto, tudo o que
o paciente associara a certo ponto de partida tinha de achar-se também em
conexão interna com ele mesmo, o que resultou na técnica em persuadir o
paciente a renunciar toda atitude crítica e utilizar o material de associações
para a descoberta das conexões procuradas (MESAN, 2008).
O
processo de associação livre tem sido conservado no método analítico como a
regra técnica fundamental em substituição ao método catártico. Tal processo
inicia-se, então, convidando o paciente a se colocar na posição de auto-observador
atento e desapaixonado, limitando-se a ler a superfície de sua consciência e se
obrigando a uma sinceridade irrestrita e sem excluir da consciência qualquer
associação, apesar de ser desagradável, pois se deve transmiti-la mesmo que a
julgue irrelevante. Com efeito, foi demonstrado com regularidade que aquelas
ocorrências que provocavam as objeções do consciente encerravam grande valor
para o encontro do recalcado. Portanto, nas neuroses, a técnica freudiana
permitiu fazer cessar, durante o período da sessão, o conflito entre o
consciente e o inconsciente. Através do procedimento das associações livres o
paciente pode dizer tudo o que passa por sua mente. O inconsciente se utiliza
desta situação para exprimir-se. O paciente se recorda de elementos de sua vida
que até aquele momento tinha esquecido e reconhece fatos de sua existência que
tinha cuidadosamente escondido em algum lugar de sua memória. Desta maneira,
protegido pelo psicanalista que se limita a ser uma ajuda, um mero guia nesse
processo de pesquisa, o analisando toma consciência de todos os elementos de si
mesmo, que num primeiro momento era impedido de conhecer. Com efeito, é
imprescindível, portanto, que o analisando tome consciência do que se passa,
pois é o único meio de fazê-lo aceitar os fatos que estão frequentemente em
flagrante contradição com o que se expressa ou com a maneira como tem de agir
fora da clínica (VALINIEFF,1971).
6. A
primeira tópica: o inconsciente e o pré-consciente/consciente
Sigmund
Freud, após o descentramento da consciência de seu soberano lugar, desenvolveu
um novo modelo de aparelho psíquico, constituído por diferentes registros, a
saber, o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, no qual o inconsciente
veio a ocupar o lugar de preeminência. Sob este modelo existem dois grupos de
representações psíquicas (FREUD, 1915). O primeiro é pertencente ao sistema
inconsciente, o qual é regido pelo princípio de prazer e tende a procurar
escoar o acúmulo de tensão que lhe é intrínseco, procurando descarregá-la o
mais rápido possível. O segundo pertence ao sistema pré-consciente/consciente e
se opõe a descarga imediata da tensão oriunda do inconsciente, harmonizando-a
ao princípio de realidade. Segundo esta perspectiva, então, o aparelho psíquico
seria dotado de uma dinâmica, havendo um conflito psíquico na medida em que as
representações inconscientes pressionariam no sentido de ter acesso à
consciência e à ação, em contrapartida, o registro pré-consciente/consciente se
oporia a este impulso através do recalque. Segundo Freud o aparelho psíquico
com suas partes é regido por leis distintas: o processo primário regendo o
inconsciente e o processo secundário o pré-consciente/ consciente. No processo
primário a energia pulsional corre livremente, e visa descarregar esta energia
pela satisfação imediata de prazer. No processo secundário, a energia não
estaria livre, investindo representações de maneira estável, culminando no
adiamento da satisfação. Com efeito, a oposição entre processo primário e
processo secundário seria correspondente à oposição entre o princípio de prazer
e princípio de realidade. Portanto, a partir desta nova concepção do aparelho
psíquico, Freud estabelece o fundamento para o edifício conceitual da
psicanálise, conhecimento este radicalmente distinto da psicologia clássica
(ligada ao cartesianismo) e da psiquiatria (BIRMAM, 2009).
7. A
segunda tópica: a psicanálise e seu fundamento epistemológico
Nos anos
iniciais do século XX houve uma intensa e efetiva contestação da cientificidade
da psicanálise, o que levou Freud a enfatizar a cientificidade da nova ciência
por meio de sua publicação Os instintos e
suas vicissitudes (1915). Esta contestação, como vimos, era oriunda de
filósofos, psicólogos e médicos, os quais contestavam a pretensão à
cientificidade por parte da psicanálise.
Com efeito, esta rejeição teve início desde que Freud realizou uma
conferência em Viena, em 1886, na qual apresentou a teoria do trauma e da
sedução das psiconeuroses. Nesta ocasião suas teorias foram consideradas “um
conto de fadas científico” pelo eminente Krafft Ebing, que escrevera uma obra
de referencia da sexologia chamada psicopatia
sexualis. Em 1900, ao publicar A interpretação dos sonhos, o não
reconhecimento científico persistiu a ponto de seu tratado ser considerado um
trabalho estético sobre os sonhos e não como uma teoria científica.
Segundo
o Empirismo lógico, a
condição para legitimar e reconhecer cientificamente um enunciado teórico seria
a possibilidade de verificá-lo empiricamente, desta maneira os enunciados
científicos seriam dotados de sentido. E o que se colocava, então, para a
psicanalise era a impossibilidade de verificação dos enunciados
metapsicológicos, como os conceitos de instinto (ou pulsão) de vida e de morte.
Estes, por sua vez, não teriam sentido, pois não poderiam ser verificados
empiricamente. Portanto, foi por causa destas oposições que Freud retomou a
problemática da fundação epistemológica da psicanálise na sua obra Os instintos e suas vicissitudes (1915) para
oferecer uma justificativa para a metapsicologia e para a psicanálise,
juntamente com diversas monografias clínicas com preocupações epistemológicas,
além de promover a difusão da psicanálise e a formação de analistas (BIRMAM,
2009).
Até
o presente momento nota-se a irrefutabilidade da existência de um registro
inconsciente no psiquismo humano, registro este ratificado pela experiência
clínica, da qual surgiu legitimamente uma nova ciência: a ciência que possui
por objeto material os processos inconscientes. Todavia, não seria possível
para Freud desenvolver os conceitos fundamentais da psicanálise sem uma
epistemologia, sem a qual também não é possível a construção metodológica de qualquer
discurso científico, pois, com efeito, necessariamente um existe em referência
a outro.
A
argumentação freudiana é simultaneamente simples e clara ao sustentar a
cientificidade da psicanálise, pois, a psicanálise não empregaria nenhum
procedimento distinto daquele realizado no campo dos demais discursos
científicos. A psicanálise deve ter o mesmo tratamento reservado às demais
ciências. Desta forma, é preciso enfatizar que as ciências em geral não
surgiram conceitualmente prontas. Com efeito, todas demoraram muito até fixarem
seus conceitos fundamentais e sua metodologia. Ademais, não foi pela construção
clara e bem definida destes que as ciências foram estabelecidas e reconhecidas.
Foi preciso, portanto, que elas ultrapassassem momentos de dúvida até que seus
conceitos fundamentais pudessem ser estabelecidos. Com efeito, ao comparar a
psicanálise com a medicina, por exemplo, é possível afirmar que a segunda
possui por objeto material definido o corpo humano, e como objeto formal, o
conhecimento da causa das doenças com o intuito de atenuá-las e promover a
saúde. Por seu turno, a psicanálise, em síntese, possui por objeto material o
inconsciente e por objeto formal a etiologia das neuroses, seu significado
subjetivo, objetivando, por conseguinte, sua cura pelo método da associação
livre.
Assim como o corpo humano e as doenças são dados empíricos imediatos na
medicina (não obstante seus desenvolvimentos históricos, desde Hipócrates até
os nossos dias, ora abandonando conceitos, ora aprimorando-os), a psicanálise,
igualmente, possui seu objeto material de estudo na qualidade de dado inegável
da experiência, a saber, o inconsciente e suas manifestações, sobre o qual,
então, deve erigir seu edifício conceitual. . Escreve Freud (1915) em seu
texto: Os instintos e suas vicissitudes:
Só
depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes
de formular seus conceitos científicos com exatidão progressivamente maior,
modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área.
Sigmund
Freud, ao posicionar-se desta maneira reportava-se explicitamente ao campo das
ciências naturais, as quais representavam os modelos teóricos incontestáveis
daquilo que deveria ser uma ciência em sentido estrito, dentre elas a física, a
química e a biologia. Portanto, é em relação a estas disciplinas que Freud
procurou tecer seu argumento de defesa da cientificidade da psicanálise,
assegurando que, para que as ciências da natureza pudessem fixar os seus
conceitos fundamentais, fora necessário um grande período de tempo até as
proposições teóricas primordiais fossem transformadas. Segundo Freud (1915):
O
avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se
tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela
qual os mesmos “conceitos básicos” que tenham sido estabelecidos sob a forma de
definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo.
Destarte, a reivindicação de Freud consistia
no desejo de que filósofos, psicólogos e homens de ciência em geral, tivessem
em relação à psicanálise a mesma flexibilidade e paciência teóricas que tiveram
seus antepassados na história da formação das diversas ciências. Com efeito, a
psicanálise por ser uma ciência nova, portanto, ainda estaria atuando na
fixação de suas bases e no enunciado de seus conceitos fundamentais como no
passado já havia ocorrido com os outros discursos científicos.
Considerações finais
Após
a publicação do livro organizado por Catherine Meyer chamado O Livro negro da psicanálise, muitos
leigos, especialmente no Brasil, chegaram afirmar que esta compilação de artigos tinha
sido o último golpe contra a cientificidade da psicanálise. Todavia, o que
muitos não sabem é que o livro foi projetado por psicólogos da vertente
cognitivista comportamental (TCC), e longe de existir um exame criterioso e
honesto das concepções de Freud, o que existe é uma cega apologia desta
corrente teórica e sua terapia (sem desprezar seus méritos), configurando a
disputa mais mercadológica do que científica.
Consoante
todas as considerações feitas em defesa da psicanálise, vimos que esta ciência
já nasceu sofrendo duras críticas, portanto, não é uma novidade a rejeição (por
parte de pessoas como Catherine Meyer) daquilo que o próprio Freud denominou “a
praga”. Com efeito, o autor deste artigo considerou as razões apontadas por
Freud, as quais foram desenvolvidas no presente trabalho, a saber, o
descentramento do eu e o ataque ao narcisismo da humanidade. Fatores que são
apontados como aqueles que causam rejeição à Psicanálise. Procurou-se
justificar a psicanálise como uma legítima ciência demonstrando a veracidade da
existência do inconsciente (seu objeto material), partindo das experiências na
clínica de Charcot, do relacionamento com Breuer, do surgimento de um primeiro
esboço do método de cura das neuroses pela hipnose, até o desenvolvimento do
método da associação livre. Este trabalho também poderia explorar os casos
clínicos de cura das neuroses, como por exemplo, o de Katharina (Aurelia
Kronich), Dora (Ida Bauer), Emmy von N. (Fanny Moser) entre outros, que
provariam a eficácia do método terapêutico da psicanálise. Todavia, o autor
opta por desenvolver os conceitos e não descrever os casos concretos de cura,
os quais podem ser complementarmente estudados pelo leitor. Finalmente, o autor
mostrou brevemente a justificativa epistemológica feita por Freud na segunda
tópica, especificamente nos escritos metapsicológicos, segundo a qual, a
psicanálise como qualquer outra ciência, não possui todos os seus conceitos acabados,
cabendo, então, aos psicanalistas sua busca constante por aprimoramento,
conforme ocorreu e ainda ocorre com todas as demais ciências.
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